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03 2008

Repensando o significado das regiões

Tradução e catástrofe

Tradução: Helena Magalhaes

Jon Solomon

A globalização originou uma transformação profunda no significado das regiões geoculturais do mundo. Para além do entusiasmo ou inquietação que este facto possa causar, esta é, indubitavelmente, uma oportunidade para repensar o significado das regiões e o papel do conhecimento humanístico na sua construção.

A vaga global e sem precedentes de desterritorialização trazida pelas lutas coloniais iniciadas no século XV, estabeleceu o conceito moderno de regiões tendo por base a catástrofe. A divisão do recém-formado globo unitário em macro regiões geoculturais ou “civilizações” que retratam os impérios pré-modernos, deve ser vista como uma resposta (sob a forma de reterritorialização) à catástrofe da desterritorialização colonial. Desnecessário será dizer que, ao longo de todo o período de modernidade colonial, entendiam-se estas regiões espaciais como estando temporalmente organizadas de uma forma essencialmente hierárquica, em que uma região estaria “à frente” de todas as outras. A actual transformação de Estados-nação em civilizações, por um lado, e de macro regiões geoculturais em estruturas de organização em rede pós-modernas, por outro, proporciona uma nova perspectiva sobre a forma como as regiões globais e as suas actuais hierarquias espácio-temporais estão a ser reorganizadas.

É essencial observar que as hierarquias de particular interesse são, em termos muito latos, de duas classes diferentes: a social e a cognitiva. Cada uma possui as suas próprias especificidades, contudo ainda estamos longe de compreender de que forma a relação entre as duas determina o modo como interpretamos cada uma delas individualmente. Em particular, no que se refere ao conceito cultural de regiões, especialmente de nação e civilização, ficamos invariavelmente presos a uma oscilação entre o cognitivo e o social. Assim sendo, elas deveriam ser vistas como o complemento à descrição proposta por Foucault, em Les mots et les choses (1963), do “Homem” como uma combinação anfibológica de componentes transcendentais e empíricos. Por outras palavras, as regiões geoculturais constituem uma espécie de “habitat” – indecidivelmente social e cognitivo – correspondendo à “dupla empírico-transcendental” que é o Homem moderno. Justamente porque as regiões geoculturais abrangem não apenas a divisão entre o social e o cognitivo, mas também as suas respectivas subdivisões internas, a tradução, em particular, desempenha aqui um papel institucional decisivo.

Nenhuma instituição representa melhor esta função do que a Universidade moderna. “A Universidade da Cultura”, descrita por Bill Readings como um dos dois grandes modelos da universidade moderna (sendo o outro o modelo tecnocientífico), deve ser vista efectivamente como uma instituição de tradução. Constitui uma instituição nacional de tradução, responsável pela tarefa de “traduzir” todo o conhecimento, de e para os idiomas nacionalizados, ao mesmo tempo que, de um modo geral, confere legitimidade à divisão interna (i.e., nacionalizada) do trabalho, que se encontra na base da classe social. Para além do papel crucial que a Universidade desempenha na criação da cultura nacional, tem igualmente um outro objectivo, ou seja, o teórico ou racional: institucionalizar e regular a relação que constitui o quasi-objecto paradigmático da espacialidade moderna – esses modelos complexos de pensamento + mundo que conhecemos como regiões geoculturais. A relação que governa a distribuição da heterogeneidade entre pensamento e mundo – a tão procurada “solução mágica” da teoria social moderna, em geral – constitui geralmente o que se congrega sob a designação de “racionalidade”. As teorias de tradução dadas a conhecer por filosofias da diferença (como em Derrida e Man) argumentam geralmente que a racionalidade, enquanto forma de distribuição ou economia da relação heterogénea entre pensamento e mundo, estabelece-se sobre a base oculta das operações intrinsecamente relacionadas da metáfora, da metonímia e da tradução. A Universidade, na sua forma moderna, tem estado, deste modo, fundamentalmente ligada a estes dois tipos de tradução essenciais para a criação de regiões modernas: a criação de uma cultura nacional e o estabelecimento de uma relação aceitável entre pensamento e mundo.

Não é, assim, por acaso que a imagem dominante da racionalidade na modernidade seja a de um quasi-objecto que congrega hierarquias tanto do conhecimento como da organização social numa só unidade geocultural, vulgarmente denominada “o Ocidente”. Como em diversas reuniões internacionais e grupos de discussão se tem vindo repetidamente a demonstrar, é impossível considerar a relação entre pensamento e mundo que se acumula, de uma forma primitiva, no Ocidente, sem nos defrontarmos com a questão do ressentimento. As diversas críticas pós-coloniais, pós-modernas e feministas à “racionalidade Ocidental” têm o mérito assinalável de demonstrar que o ressentimento é a parte reprimida desta forma particular de racionalidade.

Na sua breve mas vigorosa obra acerca das transformações originadas por formas de organização social em rede, Organized Networks (2007), Ned Rossiter demonstra de que maneira as novas formas de redes des/organizadas estão, não apenas a deslocar as regiões geoculturais da alta modernidade, mas estão, de facto, a estabelecer relações completamente originais entre o social e o cognitivo. De maneira significativa, estas novas relações geradas em rede incluem uma apropriação intrínseca das regiões geoculturais convencionais baseada em modelos etnolinguísticos. Contudo, estas regiões não desempenham propriamente uma função de “base territorial”. A sua função referencial deslocou-se de um registo espacial para um registo social que tem a ver com a dinâmica mutável das relações entre maiorias e minorias em todo o mundo. Evidentemente, a deslocação das regiões geoculturais da modernidade pelas redes pós-modernas não significa que se tenha encontrado uma solução para o dilema dos quasi-objectos! Pelo contrário, toda a problemática das regiões enquanto modelos compósitos ou anfibológicos de níveis transcendentais e empíricos, cognitivos e sociais, é apenas amplificada pela natureza essencialmente epidémica da socialidade e do conhecimento pós-modernos.

Um dos desafios colocados por esta deslocação reside no facto de estar a decorrer antes que tenha havido tempo suficiente para a crítica da herança colonial e antropológica das regiões geoculturais ter adquirido suficiente aceitação de uma forma plenamente bilateral – isto, é, de uma forma que transcenderia o fosso colonial entre “o Ocidente e o Resto” – e de gerar, assim, um entendimento completamente novo das “regiões” baseado em termos alternativos de comparação e em modelos alternativos de tradução. De facto, dado o recente intervencionismo “proactivo” e a difusão de políticas geoculturais baseadas no ressentimento, de “regresso ao Ocidente, regresso ao não-Ocidente”, essa crítica bilateral torna-se hoje cada vez mais urgente mesmo que se esteja a tornar cada vez mais rara. A nova racionalidade que está a ser promovida pela deslocação das regiões geoculturais por regiões em rede traz consigo uma contradição importante que impede a passagem tanto a passados alternativos como a novos futuros. Altamente comunicável, espalha-se como um contágio; mesmo assim, a própria rapidez de comunicação impõe constrangimentos normativos de “inteligibilidade” de acordo com códigos predeterminados.

A oportunidade oferecida pela "tradução" – como uma forma de praxis social, como sugere Naoki Sakai, em vez de um modo de "rendição epistemológica" – constitui uma oportunidade para pensar em termos de relações dinâmicas e produtivas, em vez de pensar em blocos normativos de identidade. Significa isto que a relação assume prioridade num sentido temporal: as identidades (pelo menos, na medida em que normalmente as consideramos) formam-se apenas depois de um encontro relacional. Referindo apenas um exemplo, faria pouco sentido falar de/criticar o Ocidente enquanto identidade específica ou amálgama de traços determinantes, já que a sua própria formação (como uma forma de tradução – e, certamente não a única forma possível!) determina tanto o que se sabe como quem o sabe. Os modelos de crítica que assumem a identidade do Ocidente negligenciando a “relação Ocidental” serão facilmente recuperados pela estrutura intrinsecamente hierárquica de “o Ocidente e os seus outros” (independentemente das reviravoltas ou transformações que possam ocorrer).

Assim, a tradução, na sua versão epistemológica, não consiste apenas num meio de separar o que é essencialmente híbrido, mas é também um meio de assegurar que esta separação não possa ser entendida de nenhum dos lados da separação, a não ser de uma forma diferencial intencionalmente estruturada para gerar o ressentimento. O ressentimento não é tanto uma condição psicológica como uma economia de retorno(s) que concerne a criação da identidade subjectiva através da construção de um retorno projectivo. No contexto desta economia, a tradução (na sua versão epistemológica) constitui uma espécie de “rendição epistemológica”. Seduzindo utilizadores para espaços fechados de natureza essencialmente biopolítica, forma a base de uma ordenação que articula o social com o cognitivo de uma forma fundamental, mas que todavia impede a possibilidade de comunicação sem que se tenha de passar pelos circuitos desta separação. Primeiro, porque a tradução é uma parte integral da língua nacional de cada nação, embora seja invariavelmente representada como uma utilização secundária ou excepcional da linguagem; Segundo, porque a necessidade de “tradução propriamente dita” entre as línguas é tomada como um sinal de que a heterogeneidade existente em cada língua pertence a uma ordem totalmente diferente; Terceiro, porque a pluralidade das línguas nacionais oculta o facto de todas elas participarem numa ordem colectiva; Quarto, porque a própria língua, no seio da escola moderna, torna-se directamente um “Aparelho Ideológico de Estado (AIE)” no sentido althusseriano; Quinto, porque a língua enquanto AIE desenvolve sujeitos formados na base do ressentimento (porque praticamente todos terão sido corrigidos na escola por incorrecções de gramática, de uso ou de pronúncia); Sexto, porque ao não existir comensurabilidade entre diferentes experiências de vitimização, a tradução-enquanto-rendição-epistemológica assume a impossibilidade de facto de se transformar noutra coisa para além do que se supõe que deve ser. Neste sentido, a tradução controla a instituição social e cognitiva das racionalidades regionais conhecidas como “culturas”.

Carecemos de um novo tipo de movimento sócio-cognitivo, ou prática de tradução, que se dedique a esta relação de um modo integrado, proporcionando uma racionalidade alternativa que permita a existência de novas relações sociais e cognitivas em formas que possam levar a uma redefinição profunda do significado de “regiões”. É hoje notório que esta reorganização massiva está a decorrer a todos os níveis. A questão que se coloca é se ela será conduzida por forças destrutivas de auto-imunização ou de sobreexposição centradas em redor das regiões geoculturais – um caminho que conduz à catástrofe – ou se em conjunto será possível proceder a uma reapropriação destas transformações para criar uma nova invenção?

 
Tradução e globalização: uma biopolítica da catástrofe

Quatro características fundamentais dos actuais processos de globalização dizem particular respeito aos interesses da teoria da tradução e à forma como afectam a nossa concepção de regiões: 1) a reestruturação da escala geográfica; 2) o correspondente aparecimento de redes desorganizadas; 3) o papel central de formas de comunicação tecnologicamente assistidas – não necessariamente de um tipo textual ou mesmo oral convencional – que abala profundamente temporalidades e desloca o papel dos “tradutores” para novas relações de produção e consumo, assim como para novas formas de vida; e 4) a predominância tecnologicamente assistida da língua inglesa global e a concomitante precariedade das outras línguas.

O autor da obra que será provavelmente a mais conhecida sobre a relação entre a globalização e a tradução, Michael Cronin (2003), descreve as diversas formas em que a tradução, enquanto praxis social, está a ser apropriada por um novo sistema imaterial de trabalho que valoriza afectos e conhecimentos na criação de novos “bens”, que poderão num futuro muito próximo substituir os textos enquanto enfoque central do processo de tradução. No final da sua bem documentada exposição, Cronin oferece um sugestivo argumento a favor da “diferença linguística”. Argumentando em duas frentes contra os extremos da homogeneização e do parcelamento, o autor apresenta o caso de línguas “minoritárias”, tais como o irlandês, que se encontram numa posição de indemnidade estrutural contra a investida do Inglês global e das tecnologias de aceleração, amplificação e comoditização que este congrega.

A imagem desta indemnidade é, em última análise, biopolítica e catastrófica. No último capítulo de Translation and Globalization, Cronin faz uso de uma metáfora ecológica – a “fragilidade do ecossistema linguístico” – para descrever a situação difícil em que se encontram actualmente as línguas minoritárias. Esta metáfora não é utilizada apenas por Cronin, inspirando-se no recente campo de estudos transdisciplinares conhecidos como “diversidade biocultural” (título de uma colectânea de conferências mundialmente reconhecida, editada por Louisa Maffi, docente da Universidade da Califórnia Berkeley e uma das principais impulsionadoras do conceito) e a correspondente noção de “línguas ameaçadas”. De acordo com a UNESCO, das cerca de 6.000 línguas existentes no mundo, aproximadamente metade estão “ameaçadas”. Com 96% das línguas do mundo faladas apenas por 4% dos seus habitantes e 90% das mesmas não representadas na Internet, a maioria das línguas existe hoje num estado de extrema precariedade (sendo a maioria destas, línguas indígenas sujeitas a políticas de um único estado) – com a excepção talvez das 225 línguas que desfrutam de um reconhecimento oficial pelos vários estados-membros.[1] Cronin pede que se reconheça um paralelismo com a contradição intrínseca que as sociedades modernas criam no seio do seu “desenvolvimento”: construídas segundo um paradigma de conhecimento científico concebido com base nas ciências naturais, estão, contudo, a gerar uma imensa destruição do ambiente natural que aspirariam a compreender. Tal como a tecno-ciência está a criar, acidentalmente ou não, a eliminação involuntária da biodiversidade, a globalização está a acelerar o amplamente documentado desaparecimento das diferenças linguísticas – entendidas em termos étnicos – à taxa global de uma em cada duas semanas, aproximadamente. É devido a esta metáfora ecológica, presente ao longo de todo o último capítulo da sua obra pioneira, que Cronin clama pela defesa da diferença linguística contra a pilhagem do novo “colonialismo” – a homogeneização de todas as relações sociais sob os auspícios da globalização neoliberalista em forma de “bem”, representada linguisticamente pelas línguas dominantes a nível mundial.

Clones, espécies ameaçadas, diversidade bio(cultural) … não são apenas metáforas inspiradas no mundo biológico e aplicadas agora à língua e à cultura, são também poderosos temas estruturantes sob os quais diferentes objectos disciplinares e discursos – políticos, jurídicos, biológicos e linguísticos – podem ser articulados, permitindo modelizações transdisciplinares. Desde que a Declaração de Belém (1998) reconheceu que “existe uma ligação inextrincável entre a diversidade biológica e a cultural”[2] tem havido um crescente investimento social e cognitivo na identificação de tendências actuais de catástrofe a um nível “biocultural”, existindo em paralelo com os cenários eco-bio-lógicos de colapso global. A crescente utilização de uma matriz eco-bio-lógica para descrever a transformação da diferença linguística leva-nos obrigatoriamente a questionar de que forma a tradução se relaciona com outro aspecto dominante da globalização, que normalmente não se associa à tradução: a catástrofe total. Numa época em que a perspectiva de acidente (Virilio 2005), risco (Beck 1986) e catástrofe (Dupuy 2003) a uma escala global e irreversivelmente massiva se avulta sobre nós, a língua (e por inerência a tradução) parece apresentar-nos com mais um cenário de desastre, associado à ameaça iminente e aos danos efectivamente em curso sobre a vida biológica no planeta. Chegamos a uma época em que as catástrofes eco-bio-lógicas em larga escala, desde vírus e raios UV a alterações climáticas e extinção de espécies, caracterizam o dia-a-dia, conduzindo a sociedade pós-moderna a uma procura incansável de uma imunização absoluta para estes danos.

Na medida em que a tradução seria um método profilático útil para salvar línguas precárias do seu futuro desaparecimento, tal como proposto por Cronin, ela incluir-se-ia certamente na categoria de catástrofe prospectiva. Uma convergência fundamental entre a temporalidade da catástrofe e a da tradução permanece inegável. O actual regime de tradução internacional é, ele próprio, baseado numa política unilateral de temporalidade proactiva que projecta no passado as identidades normativas que se procuram, por razões defensivas, no presente. Contudo, o advento das tecnologias de informação em tempo real, e o crescente alargamento da utilização da tradução tecnologicamente assistida, introduz um elemento de simultaneidade que perturba e até inverte as relações causais do acontecimento catastrófico.

Perante tais crono-políticas, devemos perguntar que outras opções existem para além da preservação defensiva? Desde o surgimento indiscriminado da desterritorialização global, a língua e a cultura foram agrupadas numa espécie de sistema de resposta-imunitária criado para induzir a reterritorialização pós-catastrófica. O custo desta reterritorialização, tal como tipificado pelo Estado-nação, tem sido a eliminação progressiva da diversidade linguística através do instrumento da língua nacional estandardizada. Visto que a relação entre catástrofe e regionalização atravessa uma nova crise na era da globalização, até que ponto a anterior resposta à catástrofe – a reterritorialização forçada - pode ser eficaz? Poderá o modelo transnacional e transdisciplinar disponibilizado pela “diversidade biocultural” ser posto ao serviço da invenção linguístico-cultural, ou mesmo biocultural, ou terá sido a própria natureza da invenção tão completamente comprometida pela “ontologia de acidentes” (Virilio) no seio da ciência-tecnológica moderna, que inviabilizou as suas potencialidades? Que formas ocultas de relação existem entre a procura de uma protecção defensiva e os processos de destruição actualmente em curso?

Evidentemente estas questões afectam a dimensão política, uma vez que requerem uma acção colectiva, campo de acção tradicional da política moderna. No entanto, existem muitas formas em relação às quais ainda não sabemos como “traduzir” estas questões e relações para um registo político. Estamos hoje cada vez mais conscientes de que a prevenção se pode transformar no pretexto para as mais violentas intervenções invasivas por parte do aparelho do poder. E, tal como a palavra “biocultural” sugere, estas não são apenas questões políticas de carácter cultural, embora o principal eixo da abordagem “biocultural” pareça contentar-se com a perspectiva de “vida” enquanto algo a ser preservado em vez de criado. Este antagonismo seria automaticamente impotente para se pronunciar acerca dessa outra parte do corpo social que procura redesenhar o planeta. No despontar da era da engenharia genética, onde micróbios criados à medida são vistos como uma forma potencial de comunicação[3], os desafios de pensar sobre a tradução com base em categorias intrinsecamente hostis é, em si, parte da catástrofe que procuramos prevenir.

É precisamente em termos da distinção entre preservação e criação que o conceito de biopolítica de Michel Foucault ser torna particularmente pertinente. A noção de biopolítica de Foucault acentua a necessidade de pensar simultaneamente o poder sobre a vida e o poder da vida: poder e resistência são tidos, do ponto de vista deste autor, como indissociáveis. A resistência não pode ser vista como uma forma meramente reactiva, ou seja dialéctica, de poder, “o outro ” do poder, mas deve, pelo contrário, ser vista como generativa, produzindo sujeitos, práticas e, muito particularmente, linguagens. A categoria da biopolítica emerge como um momento constitutivo e não apenas como um conjunto de constrangimentos que transformam o “homem” em “trabalho” com a emergência do liberalismo clássico. A ideia de uma ontologia imanente, material, subjacente à biopolítica está intimamente ligada ao desvio do biopoder para uma política cujo domínio é a vida e a reapropriação da vida, realçando a produção enquanto criação, em vez de reprodução, afirmando que a única via para estabelecer uma assimetria entre poder e resistência ocorre através da criação. De outro modo, a resistência pouco mais seria do que um contrapoder que irá por fim reforçar (e fortalecer) o poder. O poder actua regulando formas; o biopoder, regulando formas de vida. A biopolítica, pelo contrário, aporta inovação à vida, no sentido duplo que esta expressão comporta.

 
Cultura Bacteriana e Sociabilidade Viral

Se a oposição entre preservação e inovação – a que assistimos nas políticas de diversidade biocultural – constitui uma configuração típica do biopoder, deveríamos questionar se poderia existir uma alternativa biopolítica. Dado que as biopolíticas da tradução e da catástrofe convergem precisamente para um momento de socialidade epidémica e resposta imunológica pós-modernas, avanço, em forma de conclusão, com uma hipótese de trabalho em que as biopolíticas da tradução podem ser compreendidas de uma forma profícua com base nas metáforas do vírus e das bactérias.

A tradução, no sentido de “rendição epistemológica” criticada por Sakai, constitui um regime especificamente moderno de diferença geocultural que acompanha, em certa medida, o modelo imunológico de comunidade recentemente identificado por diversos teóricos da democracia moderna (Brossat, Derrida, Esposito). Este regime imunológico da tradução faz lembrar o que Latour designa por “cultura bacteriana”: um nome para esse regime de modernidade que favorece o surgimento de objectos híbridos mas que os oculta por detrás de sistemas de representação estritamente diferenciados. A “tradução” tem sido uma das principais formas em que esse hibridismo necessário tem sido camuflado. Lamarre acrescenta um decisivo elemento geopolítico, ausente na concepção de modernidade em Latour, ao localizar o crescimento da “cultura bacteriológica” no seio do colonialismo. Esta mudança revela não só que a “cultura” não se limita apenas à relação entre o exterior e o interior, mas que ela também descreve uma ligação implícita entre dois tipos muito diferentes de divisão de trabalho (a divisão marxista entre trabalho manual e intelectual e a divisão foucaultiana entre diferentes disciplinas). Sob o regime colonial, ambos os tipos de divisão de trabalho foram diferenciadamente articulados com uma biopolítica da diferença antropológica.

Será particularmente interessante observar a lógica bacteriana da modernidade colonial, sobretudo no que diz respeito ao modo como “o Ocidente” assumiu a forma generalizada de região imunologicamente paradigmática que supostamente oferece um “antídoto” aos problemas das demais regiões. Assim, o nosso objectivo consiste em realçar a diferença com base numa nova lógica de organização em rede – a dos vírus ou lógica viral. Em primeiro lugar, o termo “vírus”, no âmbito de um campo ou disciplina específicos, serve para indicar e classificar uma variedade de microrganismos distintos, ou no caso da ciência informática, uma diversidade de programas auto-replicantes. Em segundo lugar, o “vírus” funciona como uma noção muito mais genérica que inclui e ultrapassa largamente os limites impostos pela disciplina de estudo. É o próprio valor genérico contido no termo vírus, e não o seu significado específico enquanto palavra relacionada com um campo particular, que constitui a sua significação cultural e a sua função discursiva. Indubitavelmente, esta forma genérica possui, tal como o próprio vírus, um potencial generativo para a reinvenção das “regiões”.

Na actual transição de culturas e civilizações bacterianas para sociedades de redes virais, a tradução irá certamente continuar a desempenhar um papel fundamental. Sob o regime bacteriano, a tradução foi um meio de germinação de cultura. Os estudos de tradução elaborados à luz desta matriz sublinham sobretudo questões relacionadas com as influências transplantadas. No contexto de um regime viral, a tradução é cada vez mais vista como um meio de mutação. Neste modo, os estudos de tradução – que só agora começam a surgir – realçam a invenção genética. Parece insignificante questionar, agora, se preferimos nostalgicamente a lógica bacteriana das regiões culturais e civilizacionais às relações pós-modernas de lógica viral. A solução biopolítica será encontrada no reconhecimento das possibilidades inerentes a cada uma e na disjunção entre as duas – especialmente porque irão com toda a probabilidade coexistir, em vez de se sucederem uma à outra numa sequência estritamente temporal. O lamentável prejuízo causado à diversidade biocultural, a que assistimos hoje, é uma parte integrante da história mais ou menos violenta da transformação linguística introduzida sob os auspícios do Estado-nação. A lógica viral das redes não só acelera este processo como modifica e desfigura a escala.

 
Para além do “choque” e do “diálogo”: as regiões que ainda surgirão

Em vez de um guia detalhado sobre a forma através da qual uma re-teorização da tradução pode contribuir para a “reinvenção” das “regiões” para além das categorias gastas de “choque” e/ou “diálogo”, podemos propor esta conclusão preliminar: a tradução, tal como todas as trocas linguísticas, é tanto uma praxis de sociabilidade viral como um processo de cultura bacteriana (ou Bildung, segundo a explicação de Antoine Berman do Romantismo Alemão). Como tal, é inteiramente possível imaginar que o poder generativo da tradução, o seu poder genérico de mutação, poderá ele próprio tornar-se a base para uma nova configuração de cultura. Nesse sentido, a tradução surge-nos hoje como uma imagem do Comum. Embora não seja possível, de forma alguma, prever que tipo de região(ões) corresponderão a este modelo de tradução, é pelo menos certo que elas não serão formadas de acordo com o modelo imunologicamente destrutivo, no qual se considera a região como um “antídoto” aos problemas biopolíticos da catástrofe.


Bibliografia

Thierry Bardini, “Hypervirus: A clinical report”, in: 1000 Days of Theory (2/2/2006) ver em: www.ctheory.net/articles.aspx?id=504.
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Luc Boltanski and Eve Chiapello (1999), tr. Gregory Elliott, The New Spirit of Capitalism, London, New York: Verso, 2007.
Alain Brossat, La démocratie immunitaire, Paris: La Dispute, 2003.
Timothy Campbell ed., Bios, Immunity, Life: The Thought of Roberto Esposito, special issue of Diacritics Vol. 36, No. 2, Summer 2006.
Michael Cronin, Translation and Globalization, London / New York: Routledge, 2003.
Jacques Derrida,Voyous, Paris: Gallimard, 2003.
Jean-Pierre Dupuy, Pour un catastrophisme éclairé,  Paris: Seuil, 2002.
Roberto Esposito, Bíos: Biopolitica e filosofia, Torino: Einaudi, 2004.
Michel Foucault,  As palavras e as coisas : uma arqueologia das ciências humanas
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Thomas Lamarre, “Bacterial Cultures and Linguistic Colonies: Mori Rintarô’s experiments with History, Science, and Language” in Postions Vol. 6, No. 3, 1998, 597-6333.
Bruno Latour, tr. Catherine Porter, We Have Never Been Modern, Cambridge: Harvard, 1993.
Frédéric Neyrat, Qui Vive? Biopolitique des catastrophes. (manuscript to be published in 2008).
Jussi Parikka, “Contagion and Repetition: On the Viral Logic of Network Culture” in Ephemera Vol. 7, No. 2: 287-308. Ver em:
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Jason Read, The Micro-Politics of Capital: Marx and the Prehistory of the Present, New York: SUNY, 2003.
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Ned Rossiter, Organized Networks: Media Theory, Creative Labour, New Institutions, Rotterdam: NAi, 2007.
Naoki Sakai, Translation and Subjectivity, Minneapolis: Minnesota, 1996.
Paul Virilio, tr. Julie Rose, The Original Accident, New York: Polity, 2006.



[1] Cultural Diversity: Common Heritage, Plural Identities (Paris: UNESCO, 2002), 35. Ver página web da UNESCO dedicada ás «línguas em perigo» em: http://portal.unesco.org/culture/en/ev.php-URL_ID=8270&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html

 

[2] The Declaration of Belen”, Declaração proferida na constituição da Sociedade Internacional de Etnobiología, 1988. Página web visitada a 01/16/08: http://ise.arts.ubc.ca/_common/docs/DeclarationofBelem.pdf

 

 

[3] “Scientists take new step toward man-made life” in The New York Times, 01/24/08.

 

Jon Solomon

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